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quinta-feira, 22 de setembro de 2011

INTELIGÊNCIA COM DOR

Nelson Rodrigues entrou na minha vida de duas formas: pela veia de cronista esportivo, irmão do jornalista Mário Filho, que dá o nome oficial ao Maracanã, além de representar muito bem o estereótipo de torcedor que não apenas torce, mas distorce – “O vídeo - tape é burro!”. Pena que era Fluminense, mas não se pode ter tudo. O Flamengo teve Ary Barroso para exercer tal função (1). Como dizia o próprio Nelson – “O Fla-Flu surgiu 40 minutos antes do nada!”.

O outro caminho trilhado por Nelson foi o de autor das estórias que compuseram a série “A Vida Como Ela É”, filmada posteriormente pela Rede Globo, em 40 episódios dirigidos por Daniel Filho, há cerca de 10 anos atrás. Não por acaso tenho as duas obras, editadas pela Companhia das Letras entre 1992 e 1993, que reproduzem fielmente os escritos nestes dois campos daquele que é considerado o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos – À Sombra das Chuteiras Imortais – Crônicas de Futebol – 197 págs; e – A Vida Como Ela É – O Homem Fiel e Outros Contos- 245 págs.

Obviamente, com minha paixão pelos escritos, posso considerar que ele deve ter influenciado para que esta fosse insuflada. Qual não é minha surpresa quando, ao final de 2010, sou presenteado – fortuitamente, afinal foi o resultado de um amigo oculto do tipo “rouba-presente” – com o livro de Luís Augusto Fischer, “Inteligência com Dor – Nelson Rodrigues ensaísta” – 336 págs. – Porto Alegre, Arquipélago Editorial – 2009.

Trata-se da transcrição da tese de doutorado de Fischer, que prega que Nelson Rodrigues, reconhecido como cronista, na verdade seria melhor classificado como ensaísta por seus escritos de cunho político, que versavam sobre do dia-a-dia do Brasil. Para tanto, o autor se esmera em diferenciar ensaio de crônica, deleitando o leitor com trechos da própria obra do Nelson para exemplificar sua hipótese. Para tanto explicita tal diferença numa equação sintética: o ensaio está para crônica assim como o humor está para o cômico, a confissão para a queixa, a narração para o romance, e memória para a simples rememoração.

“(...) o depoimento pessoal como fonte da força das palavras, a relutante ou hesitante aceitação do início da confissão, o destemor em arriscar palpites, teses, afirmações sobre o mundo (...) o que ele exige é o direito de ser como é, de pensar como pensa (...).”
Págs. 21 e 22.

Tal esforço para mim foi útil, pois acabei por descobrir que na verdade Nelson Rodrigues é a síntese do que os blogueiros são hoje em dia. Ele mesmo, vivo estivesse, certamente faria uso de tal ferramenta, em que pese sua luta pela prevalência da noção de que novidade não se sobrepunha à experiência e coragem alcançadas com o passar dos anos. A relação do ensaísta com o leitor é um exemplo identificado por Fischer da alma dos autores de blogs, senão vejamos:

“(...) o ensaísta escreve como para si mesmo, sem almejar direta e explicitamente a glória pública, mas defronta-se com um problema monstruoso (que ele porém torna simples), a saber – o ensaísta não pode fugir à evidência de que, já porque escreve, quer ser lido (...) o ensaio depende vitalmente de uma comunicação com a alma que estará na outra ponta do processo, o leitor”.
Pág. 66.

Indo mais fundo nessa característica do ensaísta, o autor busca em Montaigne (2) o que seria o objetivo de um escritor que caminhasse dentre as características que o ensaio se propõe, meio que isentando-o do resultado apresentado ao leitor, como se o fora uma isca para fisgar o peixe, que se deixou capturar por alguém que o desdenhava de uma certa forma:

“(...) se o leitor não se sentir picado pela provocação, abandonando o texto, teremos aí um ensaísta satisfeito por não precisar explicar nada; se o leitor se sentir mobilizado pela insolência e partir para a leitura do texto, e por acaso, se desiludir lá pelas tantas, teremos um autor, um ensaísta, considerado inocente em qualquer tribunal [uma vez que o leitor não foi obrigado, e porque não dizer, foi quase incentivado a ler somente se o desejasse]; e se, enfim, o leitor acusar o golpe, levantar a sobrancelha e ler, ler, ler, desesperadamente, como se ali, naquela auto exposição, estivesse a própria razão da vida, teremos aí um ensaísta que completou o circuito da comunicação”. [grifo nosso]
Pág. 197.

Outro aspecto que me toca particularmente como sendo característica do ensaísta, e muito bem representada na escrita de Nelson, é o humor. “O ensaísta verdadeiramente grande apresenta uma peculiar marca, o humor” (pág. 263). Esta característica sempre esteve presente comigo, a busca pelo humor, e os blogs, ferramentas instantâneas de informação, espelham naturalmente o sentimento exposto pelo autor, que muitas vezes o coloca num ímpeto, como se fosse uma catarse para uma situação. Eu entendendo como o humor sendo uma das salvações para os males da humanidade, não poderia fugir deste argumento. Assim como o próprio Nelson o fez em vários dos seus escritos. “Dito de outro modo: o ensaísta faz, em seu terreiro o ensaio, um mix de arte, filosofia, religião e ciência. Nada lhe é estranho, nada é rejeitado a priori; e tudo vem ao acaso. O escritor incorpora, encaixa, dá voz a tudo” (pág. 264).

Outras tantas foram as descobertas na leitura deste livro que a princípio se afigurava de cunho acadêmico, mas que ao contrário demonstrou-se ser, em que pese sua erudição permanente, de prazerosa leitura. Para minha surpresa, não tinha essa noção, Nelson era tido como reacionário, de direita, mas sua obra o transcendeu e ultrapassou quaisquer barreiras ideológicas que pudessem ser interpostas por uma intelectualidade esquerdista. E ele, como ensaísta, precursor dos blogueiros, tal qual lhes afirmo, se enquadra perfeitamente ao que Fischer coloca como ensaio, corroborando sua teoria – “O ensaio é a afirmação do indivíduo, como voz que fala, como cérebro que pensa, como coração que sente, como ser que vive e tem direito a buscar sentido nas coisas a partir de seu ângulo peculiar de visão” (pág. 267). Estou ou não estou em boa companhia!?

(1)    Ary Barroso, além de autor de “Aquarela do Brasil”, trabalhou como narrador esportivo em rádio. Quando estava ao comando das carrapetas no jogo do Flamengo, ele que ficou reconhecido por tocar um apito quando saía um gol, obviamente se esmerava quando este era do rubro-negro. E quando o time da Gávea era atacado, vira-se de costas e afirmava: “Eu não quero nem ver!”.
(2)    Michel de Montaigne – 1533-1592 – Filósofo francês, autor de “Ensaios”, obra de 3 volumes editada entre 1580 e 1588. Fonte: http://educacao.uol.com.br/biografias/ult1789u659.jhtm - acessada em 16 de abril de 2011.

2 comentários:

  1. Esse post vale um almoço. No bom sentido, é claro.

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  2. Fala, primo!

    Muito legal o texto, é surpreendente como a extensa obra de Nelson Rodrigues ilustra ou pelo menos faz parte da vida de tantos brasileiros. Acabo de ler O Anjo Pornográfico, do Ruy Castro, delicioso, digno de entrar na sua provavelmente imensa fila de livros para ontem.
    Um livro como este "Inteligência com Dor..." num amigo oculto "rouba presente"... Fico a me perguntar se o gosto pela cultura dos participantes era muito acima do comum ou se sobrou o livro para você rsrs

    Abraços!

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