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quinta-feira, 17 de março de 2011

MUTAÇÕES

A morte de Heath Ledger, em Janeiro de 2008, antes do lançamento do filme que iria lhe dar o Oscar póstumo de melhor ator coadjuvante no ano seguinte pelo papel do Coringa em “Batman: o Cavaleiro das Trevas”, causou perplexidade em função do sucesso que o ator vinha alcançando, principalmente a partir de “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005). A causa da morte se deveu a uma mistura exagerada de medicamentos prescritos, como antidepressivos, calmantes, analgésicos e tranquilizantes.


 Heath Ledger e seu célebre Coringa
Fonte: cinesemana.com.br

Numa análise rasteira poderíamos dizer que este fato reforçaria o estereótipo de que no meio artístico existe uma gigantesca quantidade de malucos, pessoas que fazem questão de se envolver com drogas de todo o tipo, etc, etc. Porém, sempre fui refratário de tal avaliação. Tratando-se de seres humanos as questões nunca são simples, muito pelo contrário, tendem a ser por demais complexas para que num único insight se chegue a alguma conclusão muito próxima da verdade.

Ao ler a autobiografia da atriz norueguesa Liv Ullman – “Mutações” – Ed. Cosac Niafy – 224 págs. – 2008 – identifiquei o que acredito ser uma linha de pensamento mais consistente sobre o tema. Os atores vivem em meio ao seguinte dilema: têm que emprestar seu corpo e sua mente em prol de um outro ser, representado pelo personagem. O sucesso alcançado nesta área não é isolado das conseqüências externas – fama súbita, vidas devassadas, muito dinheiro – e em meio a tudo isso ainda existe um ser humano com suas incríveis dúvidas sobre a vida e o seu rumo futuro. Se no particular tal fato já é complicado, imagine tendo que lidar com a pressão de sempre interpretar, a vista de todos, o mais alto nível em seu trabalho.

Liv Ullman, nascida em 1938, relata em sua autobiografia tais inquietudes. Obra datada inicialmente de 1975, foi escrita ainda em meio ao sucesso obtido com a parceria que teve com o diretor sueco Ingmar Bergman. Taxada como exitosa atriz européia, sua transição para Hollywood teve ainda a reboque a criação da filha Linn, fruto do relacionamento com Bergman. No livro fica clara a dificuldade que é a mescla entre a fama e o ato de lidar com pessoas estranhas a todo momento por dever de ofício, com a necessidade de transitar entre diferentes personalidades num só corpo. Esta última característica apresenta-se quando a atriz comenta sobre papéis interpretados, exemplificando os dilemas que enfrentava à época.

Ganha destaque neste aspecto o personagem Nora, da peça do norueguês Henrik Ibsen, “A Casa de Bonecas” (1), interpretada por Ullman tanto na Noruega natal como nos Estados Unidos. Os embates de uma estória densa, que no seu idioma original já eram de um grau de dificuldade intenso por conta da necessária imersão, demonstram-se num nível mais alto quando enfrentados aos olhos de um público distinto, num idioma diferente – a própria atriz fez correções no roteiro para que melhor se adaptasse ao sentido da obra – trazendo um stress extra para a atuação.

O livro inicialmente demonstra-se de difícil leitura, pois o leitor ainda não está ciente de que enfrentará idas e vindas, tanto no tempo – ora se remetendo à infância na Noruega, ora aos tempos ao lado de Bergman ou ao lado do primeiro marido, de maneira não linear – quanto no contexto, quando a atriz dialoga com seus personagens a narrar suas inquietudes. Porém, após o entendimento de tal dinâmica, serve principalmente para identificar, tanto pelo lado do ser humano quanto pela atuação artística, todos os obstáculos que essa atriz enfrentava em meio aos loucos anos 70.

Neste ponto, voltamos então ao gancho inicial deste post. Tanto Ledger quanto Ullman conviveram com as constantes mutações presentes no seu dia-a-dia. Ora tendo que enfrentar as verdades da vida, ora tendo que ultrapassar os limites de corpo e mente para incorporar um outro ser. Se existe uma profissão em que é extremamente difícil não levar o trabalho para casa é esta de ator. Ainda mais quando de grande sucesso. Apoios psicológicos e químicos, quando mal-trabalhados, podem levar até mesmo à morte, e essa fronteira encontra-se muito próxima quando falamos do meio artístico e, infelizmente, perdemos grandes talentos por isso. Não devemos, portanto, ser alheios a este contexto e fazer pré-julgamentos apressados. Ledger faleceu por não saber lidar com tais mutações. Ullman ainda está viva para continuar contando suas histórias. O ser humano é, como já disse anteriormente, muito complexo.

Termino este texto transcrevendo um trecho da autobiografia de Ullman, na esperança de melhor demonstrar o que acima tentei expor:

“Nós, que estamos vivos, neste momento, somos apenas uma parte infinitesimal de algo que existe há uma eternidade e continuará a existir, quando não houver nada mais servindo como prova de existência da Terra.
Entretanto, precisamos sentir e acreditar que somos tudo.
Esta é nossa responsabilidade – não apenas para conosco mesmos, mas para com tudo e todos com quem partilhamos nosso tempo de existência.
O que é mutação?
Algo que acontece dentro de mim? Ou algo que experimento em outras pessoas?
Talvez seja um impulso consciente ainda mais forte e, sendo assim, para onde conduz?
Para que estou me esforçando?
Para me tornar o melhor ser humano possível? Ou a melhor artista?
O que realmente desejo fazer com aquilo que alcancei?
O que farei com a mutação?
Talvez não seja tão importante saber.
Talvez não seja tão importante chegar”. – Mutações – pág. 186.

(1)     "Casa de bonecas" narra em três atos a hipocrisia e as convenções da sociedade do final do século XIX. Nora salva a vida do marido doente graças a um empréstimo que consegue mediante a falsificação da assinatura de seu pai. Mais tarde, o marido, Torvald, reprova a atitude pelas possíveis conseqüências para sua carreira profissional, sem considerar o gesto um sinal de amor. Com isso, a protagonista acaba abandonando o marido e os filhos. A obra pertence ao período realista de Ibsen e escandalizou o público de então com sua denúncia da moral burguesa.

Fontes: acesso em 27 de Dezembro de 2010

5 comentários:

  1. Li este mesmo livro nos longinquos anos 1980. E tenho ateh hoje. Eh daqueles de guardar e reler periodicamente. Me ajudou a ser o que sou hoje e a aceitar cada um como eh, em suas limitacoes e excessos. Quando comento o que me faz ser amiga EM QUALQUER SITUACAO de uma certa pessoa, costumo responder: eh pq gosto dela ateh em seus piores momentos. Talvez uma influencia de Liv...

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  2. Senti um gosto de "quero mais"...

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  3. A questão das diferenças e em como lidar com elas me instigou a escrever um outro post.

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  4. Acho que a convivência com as diferenças tem a ver com amor.

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  5. Desenvolva, caso entenda pertinente e seja possível em meio às múltiplas tarefas!

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