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sexta-feira, 9 de março de 2012

A ERA DA ILUSÃO

Isenção. Esta é uma característica muito difícil de se encontrar no ser humano hoje em dia. Alguns profissionais deveriam tê-la no sangue para exercer suas respectivas atividades – juízes, árbitros, psicólogos, analistas financeiros e diplomatas de organismos multilaterais, por exemplo.

Porém, nesse mundo em que “a primeira impressão é a que fica” somos doutrinados a julgar uns aos outros instantaneamente, sem dar a possibilidade de que uma análise mais detida seja realizada a luz dos fatos e pautado por regras claras que seriam válidas igualmente a todos.

Os juízes teriam assim a obrigação de avaliar os casos de acordo com os fatos descritos nos autos, e tão somente por este parâmetro, não podendo ser influenciados por quaisquer fatores externos, tipo pressão da mídia ou da opinião pública. Os árbitros esportivos devem tomar suas decisões em frações de segundo, em alguns casos valendo-se de imagens gravadas, porém em outros pela simples percepção instantânea do ato cometido sob seu olhar. No máximo contaria com o auxílio de árbitros-assistentes.

Os psicólogos fariam a avaliação de seus pacientes tendo como base as informações que os mesmos trariam para a consulta, não se valendo de subterfúgios terceiros, a não ser que por opção do próprio paciente – de todo modo teria que ter o distanciamento necessário para discernir o que seria o fato em si da interpretação do fato pelo paciente. Já os analistas financeiros, de posse de equações matemáticas e do conhecimento cultural das tendências administrativas e sociológicas de um determinado mercado externariam sua opinião acerca de um investimento sem a necessidade de agradar aos acionistas. Caso contrário, todo investimento já seria pré-julgado, de acordo com os interesses do grupo dominante.

Como vocês podem perceber, a isenção total, 100%, não deixa de ser uma falácia no mundo moderno em que vivemos. Os juízes são influenciados por opiniões de terceiros; os árbitros se vêem pressionados a favorecer os times de maior expressão e ou quem está jogando em casa, com medo de possíveis represálias; os psicólogos são seres humanos tanto quanto os pacientes, e podem levar a tensão pessoal para o consultório, afetando seu discernimento em determinado dia; e os analistas financeiros são sim movidos pelos bônus que podem alcançar.  Pois bem, tal fato – a falta de isenção típica de todos nós - se agrava no caso dos funcionários internacionais de organismos multilaterais. Vivendo sob estrondosa pressão dos seus superiores e dos Estados-Membro que compõem sua organização, estes deveriam tratar a todos os países de maneira igualitária, não importando a origem da demanda, atendendo a critérios técnicos pré-estabelecidos que pautariam a atuação de sua entidade.

Para os estudiosos da matéria, este é o cerne do multilateralismo. A criação de organismos que representariam uma sociedade de nações que tomariam suas decisões por argumentos baseados pelo bom-senso, em prol da construção de um ambiente mundial de equilíbrio, que atenderia, ao máximo possível, o anseio de desenvolvimento sócio-econômico de todos, sempre por intermédio do consenso entre as partes. Mohamed Elbaradei, ex-diretor geral da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA – www.iaea.org) apresenta toda a sua angústia a este respeito em livro recentemente lançado, não por acaso denominado “A Era da Ilusão” – Ed. Leya – 384 págs. – 2011.

Sua linha de raciocínio gira em torno de sua luta, principalmente nos últimos anos em que dirigiu a agência (1), de contornar e buscar uma solução para os principais embates na área nuclear mundial em torno dos casos mais belicosos surgidos – Iraque, Coréia do Norte, Irã, Líbia e a preocupação com a descoberta de como era fácil se construir e conduzir uma rede clandestina de comércio de material atômico, com possibilidades de geração de uma bomba. Em meio a uma atuação que acabou laureada com o Nobel da Paz em 2005 ele se viu inúmeras vezes na situação de ter que controlar sua reação para alcançar um objetivo mais a frente, conter os seus ânimos ou omitir um detalhe em prol de se buscar a paz e o entendimento num ponto futuro, sempre atuando no limite entre a serenidade e o desespero por ver seus esforços em vão por conta de interesses escusos.

Pior ainda foi perceber em determinados momentos que mesmos aqueles que chamam para si a responsabilidade de atuar como guardiões da paz não enxerguem um palmo além do próprio quintal para tomarem suas decisões, muitas vezes equivocadas, causando o suplício de outros povos e deixando um suspense no ar quanto a possibilidade de eclosão de uma Terceira Guerra Mundial a qualquer momento. Falamos tanto dos Estados Unidos quanto dos países árabes, de Israel e da Coréia do Norte, ou seja, de toda a comunidade mundial que fica num ambiente de faroeste, aguardando para ver quem dá o primeiro tiro, sem abrir mão de seus arsenais.

Mesmo que fosse alcançado o consenso pelo desarmamento total de todos os países de seus artefatos atômicos, a impressão que ficamos, ao ler o relato pungente de ElBaradei – em que pese ele externar ter esperança por dias melhores no futuro, uma vez que a outra alternativa não é aceitável, ou seja, a extinção da humanidade – é de que já chegamos a um ponto em que mesmo que todos aleguem ter se livrado de suas armas, sempre ficará uma dúvida, se estarão ou não mentindo, escondendo-as para se protegerem de eventuais ataques. Ou seja, a mentira, a ilusão, é uma regra nesse mundo traiçoeiro, e não a exceção, infelizmente.

(1)    ElBaradei dirigiu a AIEA por três mandatos consecutivos, perfazendo o período total de 1997-2009. Para mais detalhes sobre a biografia completa deste brilhante diplomata ver http://www.iaea.org/About/dg/elbaradei/biography.html .

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